Sunday, December 25, 2011

Natal

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa
A mensagem, pag. 88

Saturday, December 10, 2011

Poema de Sábado

Love

LOVE is anterior to life,
AMOR é anterior à vida,
Posterior to death,
Posterior à morte,
Initial of creation, and
Inicial à criação, e 
The exponent of breath.
O expoente de respirar.

Emily Dickinson,  
Emily Dickinson Poems
pag 192

Monday, December 5, 2011

House of Women (Lynn Freed)


“Meu pai se aproxima e meu oferece sua mão. Ele me levanta da cadeira e me guia em direção ao seu amigo. 'Essa é a minha Theadora,' ele diz, 'minha jóia, meu diadema'.” (pag. 10)


Comprei House of Women Casa das Mulheres, em português — pelo título, que me fez lembrar de A Casa das Sete Mulheres da Letícia Wierchowski. No entanto, a história é bem diferente. Primeiro porque não há uma definição clara de tempo e espaço, sabe-se que se passa algum tempo após a Segunda Guerra Mundial, uma vez que Nalia, a mãe da protagonista Theadora (Thea) viu-se obrigada a abandonar sua carreira como cantora de ópera por causa da perseguição de Hitler, e acabou sendo enviada para um dos campos de concentração. O espaço também é indefinido, uma cidadezinha portuária talvez no Oriente Médio, Africa?


Devido ao passado traumatizante, Nalia cria Thea super-protegida, primeiro em um convento, depois em seu casarão cercada por criados, trancada a sete-chaves. Nem mesmo o ex-marido, pai de Thea, tinha  autorização para entrar na casa sem permissão. 


O que acontece na história é que o pai de Thea, meio que para se vingar de Nalia, e para que a filha se livre da super-proteção da mãe, apresenta Thea a seu amigo, o Assírio bonitão. A menina que nunca havia sido exposta as seduções de um homem, cria mil fantasias e acaba fugindo de casa, e por conselho do pai, embarca no navio com o misterioso Assírio, que só quase no fim da história, ficamos sabendo que se chama Naim. Após uma cerimônia de casamento secreta e rápida no navio, Thea é levada para a ilha de Naim pra lá das Américas.

“Mesmo sendo sua mulher, não é como esposa que o visito em sua biblioteca. É como alguém que nunca fui antes, Ma, nem mesmo em meus sonhos. Quando estou com ele lá, sou furiosa e cheia de desejos. Desamparada, subserviente, e desavergonhada. (…) O que é casamento senão uma forma de roubo? Alguém tomado, alguém deixado para trás. Mas com isso, pertenço a ele, pertencerei sempre a ele. E sei que não há retorno.” (pag. 59)

Thea livra-se do amor obsessivo da mãe para se deparar com um outro tipo de prisão. Naim a trata como uma princesa, não se pode negar, mas há outros mistérios que o envolvem, e que o faz desejar guardar Thea apenas para si. É uma história sexy. Inocente e inexperiente, Thea se deixa levar por seus caprichos de menina, ela é má e doce ao mesmo tempo, ela ama e odeia, em um momento se tranca no quarto e ignora o então marido por dias, e em seguida estão fazendo amor na banheira.

Após o parto das gêmeas, Naim permite que Thea volte e visite a mãe, que após a fuga da filha passou por momentos de profunda depressão e quase bateu as botas. No final das contas, House of Women relata a vida de Nalia, Thea e as mulheres que a cercam e acabam, por algum motivo, reclusas no casarão, compartilhando as frustrações de planos irrealizados, desapontamentos por ações impensadas, decisões tomadas por impulso, desejos, e o mais importante, segredos tão profundos que mudarão para sempre a vida de cada uma delas…

“A mulher cega enxuga seus olhos com a beira do vestido. Então ela olha para cima e diz, 'O homem que veio para minha mãe era o seu pai. Ele é meu pai também'.” (pag. 144)

Saturday, December 3, 2011

Poema de Sábado

Fosse o mundo um paraíso

Fosse o mundo um paraíso...
— paraíso de verdade! —
morrerias sem saber
o que é a felicidade...

Mario Quintana
A cor do invisível,
pag. 105

Saturday, November 26, 2011

Poema de Sábado

Hope
Esperança

HOPE is the thing with feathers
ESPERANÇA é essa coisa com penas
That perches in the soul,
Que se hospeda na alma,
And sings the tune without the words,
E canta o som sem as palavras 
And never stops at all,
E nunca nunca para,

And sweetest in the gale is heard;
E o mais doce na ventania se ouve;
And sore must be the storm
E ferida deve estar a tempestade
That could abash the little bird
Por confundir o passarinho
That kept so many warm.
Que aqueceu a tantos.

I've heard it in the chillest land,
Pude escutá-lo nas terras mais frias,
And on the strangest sea;
E nos mares mais estranhos;
Yet, never, in extremity,
Porém, nunca, no desspero,
It asked a crumb of me.
Pediu-me sequer um grão.

Emily Dickinson,  
Emily Dickinson Poems, pag. 80

Thursday, November 24, 2011

The Metamorphosis (Franz Kafka)

Quando sentei para escrever sobre The Metamorphosis - A metamorfose, em português - fiquei pensando no que escrever. O que escrever sobre um livro que já foi falado, re-falado, analisado, comentado por anos e anos. A história é conhecida por todos, resumida em trocentos blogs pela internet afora. O que falar da obra?

Essa versão que comprei contem o manuscrito da história, a cópia dos diários de Kafka, as cartas trocadas por ele e Felice Bouer, sua noiva na época, e também com alguns amigos próximos, além de análises ou interpretações da obra.

"(...) uma vez que os outros não conseguiam entender o que ele falava, não os ocorreu, nem mesmo à irmã, que ele entendia o que diziam, e assim ele teve que se satisfazer, quando sua irmã estava no quarto, a ouvir ocasionalmente, apenas seus suspiros e apelos aos santos." (pag. 19)

No final já estava saturada do texto. Honestamente, tornou-se um pouco irritante ler a análise de cada linha da história, desmembrando os parágrafos para traduzir o significado de cada palavra escrita pelo autor. A história é curta e simples, de linguagem universal, e embora eu tente entender o motivo de se querer entender o porque de Kafka escrever uma história tão metafórica e intrínseca, tantas inferências acabam distanciando a história do conceito original.

... Gregor Samsa é o filho mais velho e provedor da família, acorda certo dia para descobrir seu corpo em transformação, em poucas horas se torna um besouro. A família envergonhada o tranca em seu quarto, a irmã que até então era seu maior orgulho, trata-o com pena no início, talvez por acreditar que a transformação fosse temporária, mas não demora muito e a lástima transforma-se em aversão, desgosto. Excluído do convívio familiar, motivo de repulsa, e não mais útil para os seus, Gregor vai definhando aos poucos, até o dia que é encontrado seco pela empregada. A família se livra de Gregor, finalmente, e assim a vida continua.

"'Meus queridos pais', disse sua irmã e como introdução bateu com o punho na mesa, 'as coisas não podem continuar como estão. Talvez não percebam, mas eu percebo. Não vou pronunciar o nome do meu irmão na frente deste monstro, portanto tudo que tenho a dizer é: temos que tentar nos livrar disto. Temos feito tudo humanamente possível para tomar conta dessa coisa e suportar isto; não acredito que ninguém vá negar o que esforço que fizemos.'" (pag. 37)

O final é triste e estranho. Lendo os diário de Kafka, nem ele mesmo estava feliz com o resultado final, e tantas e tantas vezes criticou a história. No entanto, Gregor me parece ser a personificação de Kafka e suas frustrações familiares, em que ele mesmo se sentiu minúsculo diante das imposições da família que o obrigada a fazer o que desgostava. No fim, Kafka quis mesmo chocar, seu intuito era o de criar uma história "infinitamente repulsiva". E na minha opinião, ele realmente conseguiu.

Monday, November 21, 2011

The Secret Life of Bees - A Novel (Sue Monk Kidd)

Outro livro da lista da Rory Gilmore, yey! Esse foi um dos poucos livros que li após assistir o filme. O filme até que é fiel ao livro, em sua maioria, mas romantiza ou ameniza momentos cruciais da história. Não entendi o porque de escolherem a loirinha Dakota Fanning como Lily Melissa Owens, talvez para reforçar o conflito racial que acontece na história?


"Minha primeira e única memória da minha mãe é do dia que ela morreu. Tentei por muito tempo formar uma imagem dela de antes, pelo menos um pedacinho, como quando ela me levava pra cama, lia as aventuras do Tio Wiggly, ou pendurava minhas roupas perto do aquecedor nas manhãs congelantes." (pag. 5)


Passada em 1964 na Carolina do Sul, a história narra o drama familiar de Lily Owens, perseguida pela dúvida de ter ou não ter acidentalmente assassinado a mãe quando criança. Com um pai bruto e indiferente, Lily é criada pela babá negra Rosaleen.

Pausa na história para analisar o período histórico. 1960 foi um período marcado por manifestos contra a segregação racial. Apesar de não ser o centro da história, a narrativa faz referência ao apartheid americano, a violência cometida contra negros pelo KKK (Ku Klux Klan), e os movimentos contra a segregação que culminaram com a aprovação do Ato dos Direitos Civis de 1964.

Quando Rosaleen tenta exercitar seu mais novo direito adquirido de votar, é espancada e presa pelos brancos racistas da cidade. Lily Owens sabe que a vida da criada corre perigo, e buscando ela mesma livrar-se das crueldades de T. Ray, fogem da cidade em direção a Tiburon, cidadezinha da qual nada sabem, com exceção de que é a cidade estampada na foto da Madonna Negra encontrada na caixinha com os únicos pertences restantes da mãe de Lily, Deborah.

São acolhidas pelas irmãs Boatwright, August, June e May, criadoras de abelhas e adoradoras da Madonna Negra. August é a mãezona, prudente e sábia, respeitada na comunidade, é lider do grupo de adoradoras. Mesmo sendo uma mulher forte, ela mantém sua feminilidade, e lê Charlotte Bronte; June esconde um rancor pelos homens, seus sentimentos são expressos através de seu violino, a dor interna é aclamada em forma de música; May carrega os sofrimentos do mundo em seus ombros, ela ama a tudo e a todos, e não suporta as injustiças e a falta de amor do mundo. Ela é doce, é inocente, e para suportar suas dores, escreve-nas e as esconde em seu próprio "muro das lamentações".

"Pode-se dizer que nunca tive um momento verdadeiramente religioso, daqueles que você sabe que há uma voz falando diretamente com você, que te fala tão genuinamente que é como se as palavras brilhassem nas árvores ou nas nuvens. Mas eu tive um momento desses bem ali, em pé no meu próprio quartinho comum. Escutei uma voz que dizia, Lily Melissa Owens, seu pote está aberto." (pag. 41)


Com as irmãs Boatwright, Lily aprende não apenas os segredos da vida das abelhas, mas também o poder da transformação através da paciência e do amor. A cura de feridas como perda, traição e a falta de amor. A história traz personagens femininos fortíssimos, e esses mesmos personagens se juntam para curar suas feridas, cuidando uma das outras e criando um santuário com valores familiares e respeito, um verdadeiro lar. A importância de escolher o que realmente importa.


Como mencionei, a história traz personagens femininos fortes, em contrapartida, não há nenhum personagem masculino positivamente forte - o que foi motivo de crítica a obra pela platéia masculina. Além do pano de fundo de cunho político, a história tem também um forte apelo religioso, o que me incomoda um pouco em romances. Quando citei acima que o filme romantiza alguns pontos críticos da história, refiro-me especialmente ao final do filme que foi alterado. T. Ray é cruel do início ao fim, e apesar de o filme tentar transmitir uma mensagem de esperança, de que as pessoas suavizam, mudam, não é isso que acontece na versão original.

"A maioria das pessoas não têm idéia da vida complicada que acontece dentro de uma casa de abelhas. Abelhas têm uma vida secreta sobre a qual não temos a menor noção. (...) Eu amei a idéia de as abelhas terem uma vida secreta, do mesmo jeito que eu estou vivendo." (pag. 148)


Friday, November 18, 2011

Persuasion (Jane Austen)

Não sei se é impressão minha, mas quanto mais tempo eu passo sem ler Austen maior impacto suas obras causam em mim... ok, talvez impacto não seja a palavra correta, mas o que quero dizer é que quanto maior o intervalo de tempo entre a leitura de uma história de Austen e outra, melhor proveito eu tenho da mesma.

Digo isso porque li minha última obra em 2009, ano em que li dois de seus livros quase que seguidos - Sense and Senbility - Razão e Sensibilidade, Pride and Prejudice - Orgulho e Preconceito - e apesar de eu amar de paixão Pride and Prejudice, covenhamos que as histórias têm uma similaridade, acabou que não fiquei muito fã de Sense and Sensibility no final das contas.

Daí decido esse ano ler Persuasion - Persuasão em português, e que diferença fez esse tempo longe. Senti saudades, Jane! Sentimento esse que só se descobre após um período de ausência. Li a história com tamanha intensidade que até senti os arrepios, prendi a respiração e as lágrimas vieram quando Anne Elliot finalmente descobriu a verdade sobre os sentimentos do Capitão Wentworth. Lembrei quão delicioso é ler Jane Austen. Repito, senti saudades, Jane!

A história é uma montanha-russa emocional, recheada de detalhes sobre as intrigas e dramas familiares ingleses. Anne Elliot e Wentworth se conheceram, apaixonaram-se, e juraram amor eterno quando adolescentes. No entanto, a família Elliot era tradicional e rica demais para aceitar o envolvimento de Anne Elliot com o desconhecido e não-nobre Wentworth. Os dois são separados, e por anos e anos nada se ouve falar em Wentworth.

Quando ele reaparece no mapa, já com o título de Capitão Wentworth, a família Elliot está decadente devido aos gastos excessivos do Sr. Elliot. Como medida desesperada para ajudar nas despesas, e ainda manter o status nobre, Elizabeth Elliot e o Sr. Elliot decidem mudar para Bath e alugar o casarão em Kellynch. A propriedade é alugada pelos Crofts, em pouco tempo Anne toma conhecimento que a Sra. Croft é na verdade irmã do Capitão Wentworth.

O encontro é inevitável, mas para surpresa de Anne, Wentworth mudou, era como se nunca tivessem se conhecido. Dois estranhos.

Logo, no entanto, ela começou a racionalizar consigo, e tentar sentir menos. Oito anos, quase oito anos se passaram, do dia em que tudo foi desfeito. (...) O que oito anos seriam capaz de fazer?
(...) Alas! com todo seu raciocínio, ela descobriu que para os sentimentos reprimidos oito anos podem ser quase que nada. Agora, como traduzir os sentimentos dele? (pag. 51)


Entre os jantares, passeios e encontros na casa dos Hayters e Musgroves, Anne Elliot observava discretamente o comportamento de Wentworth, e o desenvolvimento da amizade entre ele e Louisa Musgrove. Louisa com seu comportamento expansivo, falava abertamente sobre a vida da família, criticando o comportamento da cunhada Mary Musgrove (irmã de Anne), e é quando ela deixa escapar que o irmão havia pedido Anne Elliot em casamento mas ela o rejeitou, e havia rejeitado outros também, de acordo com o relato.

Quando o acidente com Louisa Musgrove acontece durante a viagem do grupo a Lyme, Anne tem a convicção de que os sentimentos de Wentworth não mais pertencem a ela. O desespero, a dor em sua face pela situação de Louisa convencem até mesmo Mary e Charles de que Louisa e Wentworth muito em breve seriam oficialmente um casal. Anne assiste a tudo calada, tentando esconder ou disfarçar sua angústia e desapontamento. Todos esses anos esperando por ele, a promessa feita não foi esquecida por ela, mas pelo que tudo indica, ela foi a única que realmente levou a promessa a sério.

Já em Bath, Anne ouve sobre o noivado de Louisa Musgrove o Capitão Benwick. Para a surpresa de todos, Wentworth partiu poucas semanas após o estado de saúde da moça melhorar, deixando claro que não havia relacionamento entre os dois. Não demora muito para que Charles Musgrove e a esposa Mary, também cheguem a Bath, e ouve-se que os Crofts também estariam chegando a cidade. Sr. Elliot que ainda não os conhecia, e já ciente da posição dos Crofts na sociedade, deixa claro que apresentaria o clã Elliot aos locatários de sua propriedade.

Mais jantares e encontros, Wentworth também chega a Bath, agora não mais o desconhecido da adolescência, até mesmo o Sr. Elliot busca conhecê-lo. O que ele não contava é que Anne estava sendo cortejada pelo primo bonitão William Elliot - aquele que a olhou da cabeça aos pés em Lyme num breve encontro, quando eles nem mesmo tinham conhecimento do grau de parentesco. Deixaria Anne Elliot se envolver pelas atenções de William? Rejeitaria Anne um outro pretendente segurando-se a uma promessa que parece ter sido guardada apenas por ela?  Ha, só lendo para descobrir.

"Anne não via nada, não pensava nada sobre o brilho do lugar. Sua felicidade vinha de dentro. Seus olhos brilhavam, seu rosto brilhava; porém ela não se dava conta disso. Ela pensava apenas sobre meia-hora atrás, e ao caminhar para seus assentos, seus pensamentos relembraram passo-a-passo o que aconteceu. (...) aquela raiva, ressentimento, repulsa, não mais existiam. (...) Ele a amava." (pag. 150)

Saturday, November 12, 2011

Poema de Sábado

Da perfeição da vida

Por que prender a vida em conceitos e normal?
O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer...
Tudo, afinal, são formas
E não degraus do Ser!

Mario Quintana, Espelho Mágico
pag. 36

Friday, November 11, 2011

O Quinze (Rachel de Queiroz)

Ler Rachel de Queiroz é lembrar da minha adolescência, é lembrar das viagens de férias para o Ceará com minha avó e minhas primas. Como muitos nascidos no Norte do Brasil, eu sou descendente de nordestinos. Meu avó paterno nasceu em Juazeiro do Norte, por isso, minhas férias da escola tinham Ceará como destino certo, eram meses e meses em Fortaleza com viagenzinhas curtas para Juazeiro.

Antônio Torres resumiu brilhantemente a história em poucas linhas: "O embate entre o homem e a natureza, no trágico destino de um povo assolado pela grande seca de 1915 que, diga-se de passagem, não foi a última. Numa prosa simples, viva, comovente, Rachel de Queiroz tece seu relato em duas linhas de força: a história de um amor irrealizado da mocinha que lê romances franceses e sonha com o moço rude entregue à faina solitária de salvar o seu gado; e a dramática marcha a pé de um retirante e sua família, sonhando chegar ao Amazonas."

A mocinha é Conceição, que "tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona" (pag. 13); e o moço rude é Vicente, seu primo. Os dois haviam tido um romance na adolescência que foi rompido quando Conceição mudou para a capital para estudar e se formar no Magistério.

"Separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; era preciso lutar tanto, e tanto esperar para ter qualquer coisa de estável a lhe oferecer!" (pag. 49)

O interessante na história desses dois é a falta de comunicação, o supor, o achar que é isso que o outro quer dizer e não conversar abertamente para esclarecer os fatos, baseando seu julgamento em especulações pessoais sobre as ações do outro. É como se ambos tivessem, no íntimo, a certeza de que ficariam juntos, mas nenhum dos dois teve a oportunidade ou talvez a coragem de verbalizar, a espera de que o outro desse o primeiro passo, e acaba que o passo foi dado pelos inúmeros fatores externos, distanciando-os a cada encontro.

A família retirante é a de Chico Bento e sua esposa Cordulina, e os cinco filhos pequenos. "Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse." (pag. 31) Decidido a partir para a capital e de lá seguir para o Norte, Chico Bento parte com a família em sua jornada a pé pelo sertão.

Ler O Quinze trouxe esse momento nostálgico, uma nostalgia doce e amarga ao mesmo tempo. Nas visitas a Juazeiro via pela janela do ônibus a paisagem de terras secas e áridas do interior do nordeste, a seca se faz sempre presente naquelas terras, não importa o ano que se visite, e ao ler o livro me veio a memória as casas de barro, a terra rachada, as crianças de pé no chão. Quão absorto alguém se sente ao ver essas imagens quando não se compreende ou sabe as dificuldades que os habitantes da seca passam... e ninguém melhor do que Rachel de Queiroz para escrever sobre o drama de retirantes nordestinos. Livro este que é o seu primeiro romance escrito aos 20 anos, publicado em 1930.

"E a criança, com o cirro mais forte e mais rouco, ia-se acabando devagar, com a dureza e o tinido dum balão que vai espocar porque encheu demais." (pag. 60)

Tuesday, November 8, 2011

Atonement (Ian McEwan)

Sei que tenho estado bem ausente do blog ultimamente, mas vou correr contra o tempo para comentar sobre todos os livros lidos esse ano antes do final de 2011. Ai, ai, espero que dê tempo!
Atonement - Reparação, em português - está na lista da Rory Gilmore, eis o motivo de sua presença aqui… então vamos a história.

O livro é dividido em três partes, com um capítulo extra que explica e fecha a história. A primeira parte introduz o leitor a família Tallis, família aristocrática residente de uma cidadezinha no interior da Inglaterra. E nossos protagonistas, os irmãos: Briony, a caçula e nossa narradora-personagem; Cecília, e Leon, o mais velho. E a história começa com a movimentação na residência dos Tallis em celebração ao retorno de Leon.

Briony escreve o roteiro de The Trials of Arabella a ser encenada pelos primos - Jackson, Pierrot e Lola - hóspedes por tempo indeterminado dos Tallis após o divórcio dos pais. Entre os atritos entre primos, a depressão da mãe, e seus delírios pré-adolescentes, Briony testemunha uma cena intrigante. Da janela de seu quarto ela vê Cecília e Robbie no jardim próximo ao chafariz, Cecília despindo-se e mergulhando no chafariz, depois diz algo a Robbie, e visivelmente abalada caminha em direção à casa sem olhar para trás, ele fica a admirar Cecília mas logo parte. Onde outrora existiam dois corpos, resta uma poça de água que logo seca com sol.

"Os homens removeram seus chapéus e esperavam por ela, sorrindo. Cecília se perguntou, como as vezes fazia quando era apresentada a um homem pela primeira vez, se esse seria aquele com quem iria se casar, e caso seria esse momento particular que se lembraria para o resto de sua visa—com gratidão, ou profundo arrependimento." (pag. 44)

Quando Robbie lhe entrega um bilhete endereçado a Cecília, Briony não pensa duas vezes antes de ler. Ela já corria longe quando Robbie realizou que o bilhete enviado era o errado, era o que deveria ter destruído, o bilhete com seus desejos eróticos mais íntimos. Quando Briony descobre Cecília e Robbie na biblioteca, seus olhos não sabem o que vêem, se aqueles corpos ferozes buscando um ao outro cometem um ato de amor ou crueldade. Imatura, Briony acredita que Robbie molestou a irmã e busca oportunidade para desmascará-lo.

A oportunidade vem quando Pierrot e Jackson fogem de casa. Durante as buscas madrugada a dentro, Briony flagra a prima Lola sendo atacada. No escuro apenas viu uma sombra, mas teve convicção de que tal ato só poderia ter um autor. Conta a Lola o que havia testemunhado na biblioteca, e acredita que se ele teve coragem de cometer tal ato com Cecília, com certeza o faria novamente com a inocente Lola.

"Ela quis gritar, mas não conseguiu fôlego, e sua língua parecia lenta e pesada. Robbie se movia de tal maneira que sua visão da a irmã estava bloqueada. Então Cecília lutou para se soltar, e ele a deixou ir. Briony parou e chamou o nome da irmã. Quando ela passou por Briony não havia sinais em Cecília de gratitude ou alívio. Seu rosto não tinha expressão, quase composto, e ela olhou diretamente em direção a porta pela qual saiu." (pag. 116)

Logo a notícia se espalha, a polícia é chamada, Briony expõe o que ocorreu com Cecília. Ao amanhecer, Robbie retorna a casa com os irmãos foragidos nos braços, mas suas explicações e os clamores de Cecília são em vão.

Parte dois começa com a II Guerra Mundial. Após anos na prisão, Robbie encontra-se perdido em meio aos bombardeios. Cecília cortou contato com a família após a prisão de Robbie e virou enfermeira da Cruz Vermelha, o relacionamento dos dois é resumido na troca de cartas cheias de esperança de um futuro incerto.

Briony busca reconciliação com a irmã, muda para Londres e entra na escola de Enfermagem com esse intuito. Não mais a menina imatura e mimada pela mãe, Briony reconsidera seus atos, relembra o passado e o tempo em que quando criança fora apaixonada por Robbie. Agora tem a certeza de que ele é inocente. Tentando reparar seu erro, busca Cecília para esclarecer os fatos. Como enfermeira, Briony testemunha uma realidade que jamais conseguiria transcrever em suas histórias. As novas experiências lhe dão estímulo, veracidade às suas palavras... Atonement é no final das contas, a história de Cecília e Robbie escrita por Briony.

Morte, desespero, dor, medo. São tantos sentimentos opressivos vividos durante o tenso período da guerra, e eles são todos transcritos em Atonement. Do desesperado instinto de sobrevivência de Robbie e seus companheiros, aos últimos minutos da mãe com o filho no colo antes da bomba atingi-los. Do sofrimentos dos soldados feridos, a compaixão das enfermeiras. McEwan tem um talento descritivo típico dos escritores europeus, e sua representação da vida campestre da típica família inglesa, com toda sua hipocrisia, fez-me lembrar Austen e Tolstoy. A história é muito bem escrita porém muitíssimo depressiva, pesada, perturbadora. E o final, ah, quem leu por favor me diga o que achou...

"Através do bolso de seu casaco ele sentiu o amontoado de cartas. Vou esperar por você. Volta." (pag. 246)


Saturday, October 22, 2011

Poema de Sábado

Canção de Outono

O outono toca realejo,
No pátio da minha vida,
Velha canção, sempre a mesma, 
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!

Mario Quintana,
Canções, pag 31.

Tuesday, October 18, 2011

The Angel's Game (Carlos Ruiz Zafón)


O que faz da leitura um ato excitante? Quais fatores externos podem contribuir para uma boa leitura? Para mim, devo confessar, não há prazer maior do que ler um livro e visitar o lugares mencionados na história. Ainda melhor, ler um livro no ambiente em que a história foi escrita. Foi essa a minha descoberta ao ler The Angel's Game em Barcelona.

Quando li The Shadow of the Wind - A sombra do Vento, Zafón deixou Barcelona marcada em minha memória. Por esse mesmo motivo, escolhi Barcelona para o último destino da nossa viagem de férias. E levei na bagagem The Angel's Game - O Jogo do Anjo, em português. 

Foi uma experiência única ler o livro pela manhã, e sair para perambular porLas Ramblas, visitar igreja Santa Maria del Mar, Parque Guell, igreja Del Pi, o bairro Gótico, e saber que os personagens do livro que estava lendo interagiram, caminharam pelos mesmos lugares. Barcelona teve um significado diferente para mim por causa das histórias de Carlos Ruiz Zafón. O modo que ele descreve Barcelona faz com que o leitor sinta como se tivesse nascido e crescido naquela vizinhança. 

''Ele costumava dizer que assim que eu fizesse dez ele me mandaria para o trabalho, e que era melhor eu me livrar dessas idéias absurdas se eu não quisesse acabar um perdedor, um ninguém. Eu costumava esconder meus livros embaixo do colchão e esperar ele ir dormir para lê-los.'' (pag. 35)

Bairro Gótico
 O pai de David Martin era vigia do jornal A voz da Indústria, propriedade da renomada família Vidal. Após o assassinato do pai a caminho do trabalho, David passa a ser criado no jornal, sob a proteção do Don Pedro Vidal. David tem um sonho e talento, ser escritor. E é a pedido de Don Pedro, que Don Basílio oferece a David uma chance de escrever short-stories para uma coluna do jornal. 

Em pouco tempo Os Mistérios de Barcelona se tornam um sucesso. É quando Andreas Corelli contacta David pela primeira vez. David até investiga sobre esse tal publicista estrangeiro, questiona o Senhor Sempere, que por sua vez consulta Gustavo Barceló, pouco se sabe sobre ele... a proposta é deixada de lado, e ao invés de trabalhar para Corelli, David decide deixar o jornal e trabalhar para Barrido & Escobillas.

''A série, que eu decidi chamar de Cidade dos Condenados, deveria ser publicada mensalmente em folhetos de capa-dura colorida e ilustradas. Em troca eu seria pago muito mais do que eu jamais imaginei receber fazendo o que gosto, e a única censura imposta seria ditada pela lealdade dos meus leitores. Os termos da oferta obrigavam-me a escrever anonimamente sob um pseudônimo extravagante, mas para mim era um preço pequeno a pagar por poder sobreviver da profissão que sempre sonhei em praticar.'' (pag. 51)

David vive para escrever, aluga o casarão abandonado que sempre sonhou em morar (e os mistérios do casarão vão sendo revelados pouco a pouco). Seus dias e noites são totalmente dedicados às suas histórias, criador e criatura se misturam numa simbiose assustadora. As dores de cabeça aumentam, e nem mesmo o médico sabe lhe informar quando tempo de vida lhe resta, dias? Meses? Quando Cristina o procura pedindo ajuda com livro de Don Pedro, David se desdobra para escrever aquele que será seu grande livro, e também para escrever o livro do seu amigo e mentor Don Pedro Vidal, antes de sua morte.

Em busca do Cemitério
dos Livros Esquecidos
Ambos os livros são lançados no mesmo período. O de Pedro Vidal é aclamado como o melhor já escrito, o de David é considerado mero rascunho de um pseudo-escritor. É quando Andreas Corelli contacta David pela segunda vez, oferecendo uma quantia em dinheiro que David jamais conseguiria gastar em vida, em troca de seus talentos para escrever Lux Aeterna. O acordo é selado verbalmente, periodicamente Corelli e David se encontrariam para discutir o progresso do livro. Com ele vem o dinheiro, e a saúde restaurada do nosso protagonista.

Mais uma vez David se entrega a sua história, cada momento do seu dia é gasto pesquisando, coletando material e escrevendo rascunhos para Lux Aeterna. Quando ouve sobre o casamento da sua amada Cristina e Don Pedro, sabe que já não faz mais parte daquele círculo, mesmo tendo prometido ao pai de Cristina que sempre a protegeria. Quando Senhor Sempere o apresenta a Isabella, admiradora de seus livros, aspirante a escritora, mal sabia David que Isabella se tornaria sua protetora e praticamente salvaria sua vida.

''O homem de preto é o senhor deste lugar, o pai de todo segredo e conhecimento proibidos, da sabedoria e memória, portador da luz para contadores de histórias e escritores desde o tempo imemorial. Ele é o nosso anjo guardião, o anjo das mentiras e da noite.'' (pag. 129)

Cristina não é feliz, e todos sabem. Vive isolada, até tentou suicidio. Ela foge e busca refúgio em David. Ao descobrir sobre o livro que ele está escrevendo, sente que o livro é amaldiçoado, implora para que ele pare. Isabella tem o mesmo sentimento em relação ao livro e também a Corelli. No dia em que David e Cristina fugiriam do país, ela desaparece.

''Quando retornamos ao amanhecer, após procurar por ele durante toda a noite, encontramos seu corpo no fundo da piscina. Ele havia se afogado na tarde anterior e não escutamos seus gritos por socorro porque estávamos ocupados discutindo um com o outro. Ele tinha sete anos de idade.'' (pag. 287)

David sabia que havia algo de obscuro por trás de Andreas Corelli, enquanto pesquisava sobre as religiões para Lux Aeterna, fazia também uma pesquisa paralela sobre Cordelli, Diego Marlasca, e o casarão em que atualmente morava. O que pareciam fatos aleatórios começam a se alinhar em uma teia perigosa. David tem a convicção de que os fatos precisam realmente ser esclarecidos após saber que Senhor Sempere morreu tentando protegê-lo. David precisa achar o culpado da morte do amigo.

''Foi então que a vi. Ela estava mancando sobre o lago congelado, uma linha de sangue atrás dela, a camisola cobrindo seu corpo vibrava com a brisa. Quando por fim cheguei a margem, Cristina havia caminhado por volta de trinta metros em direção ao centro do lago. Gritei seu nome e ela parou. Lentamente ela virou e vi seu sorriso enquanto uma teia de fissuras começou a tecer-se embaixo de seus pés. Eu pulei no gelo, sentindo a superfície congelada me envolver, e corri em sua direção. Cristina ficou parada, olhando para mim. As fissuras embaixo de seus pés estavam se expandindo em uma mistura de veias negras. O gelo estava cedendo e eu cai com meu rosto no chão.'' (pag. 441)

Parque Guell
Há muito de A sombra do Vento em O Jogo do Anjo - começando com a livraria do Senhor Sempere; o famoso Gustavo Barceló; e O Cemitério dos livros Esquecidos com seu guardião Isaac. A história é eletrizante, Zafón como sempre, escreveu uma história bem desenvolvida, sem hiatos. Em A Sombra do Vento Zafón apenas insinuou uma história macabra, que no final das contas não se revelou assim tão assustadora. 

Já em O Jogo do Anjo, não se iludam, Zafón trouxe o macabro do início ao fim. O Jogo do Anjo faz jus ao nome, o anjo negro convence David Martin a escrever Lux Aeterna, como se fosse uma nova Bíblia, onde as pessoas leriam e seguiriam como uma nova religião. Cabe a David Martin terminar de escrevê-lo ou não, e ainda descobrir os segredos obscuros escondidos por trás de Corelli, Marlascas, e seus seguidores.



''David olha pra mim.''

Sentei na beira da cama e olhei para ela.

''Você tem que destruí-lo,'' ela disse.

''Não estou entendendo.''

''Você tem que destruí-lo.''

''O que devo destruir?''

''O livro.''

(pag. 436)

Saturday, October 15, 2011

Poema de Sábado

Upon Julia's Clothes
Sobre as roupas de Julia

Whenas in silks my Julia goes,
Enquanto em seda minha Julia se vai,
Then, then (methinks) how sweetly flows
Então, então (parece-me) quão docemente   flutua
That liquefaction of her clothes.
Aquela liquefação de suas roupas.

Next, when I cast mine eyes and see
Depois, quando bruscamente viro e vejo
That brave vibration each way free,
Aquela brava vibração  livre por todos os lados,
O how that glittering taketh me!
Oh  como aquele brilho se apropria de mim!

Robert Herrick, 1648
The Best Poems of the English Language,
pag. 158

Monday, October 10, 2011

The Unbearable Lightness of Being (Milan Kundera)


''Os personagens dos meus romances são minha próprias possibilidades irrealizadas. É por isso que os amo e ao mesmo tempo tenho horror a eles. Eles cruzaram limites que eu mesmo tenho contornado. É esse cruzar de limites (o limite além de onde o meu próprio 'eu' termina) que tanto me atrai.'' (pag. 221)


Decidi escolher The Unbearable Lightness of Being - A Insuportável Leveza do Ser, em português - para o BookClub porque fazia um bom tempo que havia lido o livro, amei a história, mas ainda não havia comentado aqui no blog. Boa chance de refrescar a memória e re-ler um livro que amo.

O que falar sobre Milan Kundera? O que gosto em suas narrativas é que todos os personagens têm o mesmo peso na história, não há protagonistas, por isso não há o elemento surpresa - ele pode informar ao leitor que o personagem morreu no primeiro capítulo, a história continua, e o personagem continua a ser desenvolvido - sua intenção é conversar com o leitor sobre as relações humanas, suas ações e consequências, sobre o momento único do existir. E em The Unbearable Lightness of Being, que se passa no ano de 1968, Kundera explora a vida intelectual e artística da sociedade Tcheca durante o período Comunista.

Kundera faz uma reflexão filosófica contrária à Nietzche, que acreditava que as ações do universo são recorrências eternas, ou seja, já ocorreram e vão se repetir num círculo vicioso... infinitamente, o que causaria um ''peso'' em nossas vidas, podendo ser este peso positivo ou negativo, dependendo de como enxergamos tais ações... já Kundera traz a idéia de que só temos essa vida e que cada ação conta como única, o que acontece agora jamais acontecerá novamente - daí vem a idéia da ''leveza do ser''.

Muss es sein?  Es muss sein!  Es muss sein!
Terá que ser assim?  Assim deve de ser!  Assim deve de ser!
(pag. 32)

Essa idéia de leveza do ser é representada na história através de cada um dos personagens, mas eu destaco, obviamente, Sabrina e Tomás. Tomás é um mulherengo, após conhecer Tereza, ele reconhece que a ama, e sua vida não é completa sem ela. Ele sente uma ternura em relação a Tereza, sente responsabilidade de protegê-la, de trazê-la para baixo de suas asas, mas ao mesmo tempo, Tomás não consegue ser fiel a Tereza, ele precisa de outros corpos, sexo e amor são dois elementos que não estão necessariamente ligados. Tomás ama Tereza, mas precisa de sexo fora de Tereza.

Sabrina é como Tomás, com a exceção de que ela não tem a necessidade de nenhum tipo de ligação emocional para se sentir completa. Muito pelo contrário, Sabrina foge de qualquer tipo de apego, não cria raízes, e é por isso que ela e Tomás foram amantes por tantos anos, porque ambos buscavam um tipo de prazer e compreensão que os faziam amantes perfeitos. Não era apenas prazer sexual, era isso, e também uma certa cumplicidade, sem benevolência.

''(...) Ele havia agido contra seus princípios. Dez anos atrás, quando ele se divorciou de sua esposa, celebrou aquele evento do mesmo jeito que alguns celebram um casamento. Ele entendeu que não nasceu para viver lado a lado com nenhuma mulher e poderia ser completo sendo um solteirão. Ele tentou desenhar sua vida de tal maneira que nenhuma mulher se mudaria para seu apartamento com uma mala. Por esse mesmo motivo seu flat tinha apenas uma cama. Apesar do espaço enorme, Tomas sempre dizia a suas amantes que não conseguia dormir com ninguém ao seu lado, e as levava para casa após a meia-noite. (...) Mas dessa vez ele dormiu ao seu lado. Quando acordou na manhã seguinte, ele encontrou Tereza, ainda dormindo, segurando sua mão.'' (pag. 10)

Tereza descobriu logo no início do relacionamento que não era a única na vida de Tomás, mas nunca teve forças para abandoná-lo. Tereza é um personagem que incita compaixão. As meninas do BookClub a criticaram, eu consegui entender seu lado porque ela me fez lembrar a minha própria mãe. Tereza tinha esperanças de que um dia Tomás sentiria necessidade apenas dela. Tinha o desejo íntimo e gritante de ser amada, de ser querida nem que fosse por alguns instantes. Ela é um personagem extremamente carente, que preferiria mil vezes ter alguém infiel, mas ter alguém. Ter alguém a quem pudesse segurar as mãos fortemente, e saber que aquela pessoa estava ali enquanto ela dormia, do que acordar num quarto vazio. Tereza dormia segurando as mãos de Tomás como alguém se agarra à vida. E sofria calada.

''Era isso que o sonho queria dizer a Tomás, aquilo que Tereza mesmo não conseguia dizer. Ela veio para ele para escapar do mundo da mãe, um mundo em que todos os corpos eram iguais. Ela veio pra ele para fazer seu corpo único, insubstituível. Mas ele, também, havia desenhado uma placa mostrando que ela era igual as outras: ele as beijava do mesmo jeito, acariciavam-nas do mesmo jeito, não fazia absolutamente nenhuma distinção entre o corpo de Tereza e os outros. Ele a mandou de volta ao mundo que ela tentou escapar, enviou-na para marchar nua com as outras mulheres nuas.'' (pag. 58)

Tomás não era alheio ao sofrimento de Tereza. Kundera deixa claro ao leitor que Tomás tinha ciência do sofrimento que causava, mas também não tinha forças para deixar de fazer. E ao invés de desculpar-se, Tomás a presenteia com Karenin.

Quando a Revolução Tcheca começa, os personagens se dispersam, Sabrina e Tomás perdem contato, Tomás se ver obrigado a deixar seu emprego no hospital que tanto respeitava, e sua pátria, por não baixar sua cabeça e obedecer o novo regime. Mudam para Suiça, mas Tereza não está feliz. Tereza sabe que mesmo em um outro ambiente, Tomás não mudará. E é quando Tereza o abandona e volta para Praga que ele percebe o tamanho do espaço que ela ocupa em sua vida.

Tomás abandona o hospital na Suiça e volta para Praga em busca de Tereza e Karenin, perseguido pelo regime, passa de médico renomado a limpador de janelas, no fundo culpa Tereza por seu declínio, ela o fez voltar... mesmo não verbalizando sua vontade, foi por Tereza que ele voltou, voltou para sua ruína.

''A negação ao comprometimento. A fina linha que distingue o que é bom e o que é mau, é algo que estamos começando a perder. Não temos mais a menor idéia do que significa sentir culpa. Os Comunistas têm a desculpa que Stalin os enganou. Assassinos têm a desculpa de que suas mães não os amaram. Ninguém poderia ser mais inocente, em sua alma e consciência, do que Edipo. E ainda assim, ele puniu a si mesmo quando viu o que havia feito.'' (pag. 218)

Sabrina muda para Paris, conhece Franz. A princípio ela acredita que o relacionamento não passará de mais uma aventura para ambas as partes. Suas intenções continuam as mesmas. Sabrina sabia que ela e Franz não tinham nenhum outro tipo de afinidade. Franz nunca a entendeu, não era o mesmo relacionamento intelectual e sexual que tinha com Tomás, que mesmo em silêncio a compreendia. No momento em que Franz abandona sua esposa por Sabrina, ela, sem mesmo olhar para trás, parte para os Estados Unidos.

As opiniões sobre o livro foram variadas, Nari e Jessica comentaram que o fato de a história não seguir uma sequência cronológica, e as muitas doses de filosofia as desagradaram - o fato de que Kundera escreve sobre sexo tão deliberadamente também não as ajudou, e elas quase desistiram da leitura... Na minha opinião, esse é um dos motivos pelo qual eu gosto da história. Como mencionei acima, o objetivo de Kundera não é focar nos personagens em si, Tomás e Tereza; Sabrina e Tomás; Sabrina e Franz; Tomás, Tereza e Karinin; mas sim explorar suas ações. As ações dos personagens e suas escolhas, são os elementos principais da história.

''Ele subitamente lembrou do mito Symposium de Platão: As pessoas eram hermafroditas até que Deus as separou em dois, e agora todas as metades perambulam pelo mundo em busca de sua outra metade. Amor nada mais é que do que saudade da nossa outra metade perdida.'' (pag. 238)



Saturday, October 8, 2011

Poema de Sábado

Da discreta alegria

Longe do mundo vão, goza o feliz minuto
Que arrebataste às horas distraídas.
Maior prazer não é roubar um fruto
Mas sim ir saboreá-lo às escondidas.

Mario Quintana,
Espelho Mágico, pag. 30

Sunday, October 2, 2011

Me Talk Pretty One Day (David Sedaris)


"Mudei para Paris com esperança de aprender o idioma. Minha escola ficava a dez minutinhos do meu apartamento,  e no primeiro dia de aula cheguei lá cedo, observando como os veteranos cumprimentavam uns aos outros no corredor. (...) 'Isso é normal para eu, também, mas ser mais forte, você. Muito trabalho e um dia você falar bonito. As pessoas vai começar gostando de você logo. Talvez amanhã, okay'.'' (pag. 166, 172)


De maneira coloquial e com muito humor, David Sedaris compartilha com seus leitores em Me Talk Pretty One Day - Eu falar bonito um dia - em português,  suas experiências crescendo na Carolina do Norte, e parte da sua vida adulta quando decide mudar para a França com o namorado Hugh.

Nascido em uma família conservadora, que muda para a Carolina do Norte por causa do trabalho do pai, engenheiro da IBM, David sabia que sua dislexia não era apenas um problema a ser resolvido com  fonologia. Nem mesmo as tentativas dos educadores, e a pressão em casa conseguiram camuflar o que David já há tempos desconfiava... era gay.

''Quando criança, meu pai foi transferido e nossa família mudou do noroeste de Nova Iork para Raleigh, Carolina do Norte. IBM havia relocado um bocado de nortistas, e juntos fazíamos piadas sem fim dos nossos vizinhos e do modo acanhado e atrasado em que viviam. (...) Meus pais proibiram o uso dos títulos 'madame' e 'senhor' quando conversando com professores e atendentes. (...) A família permaneceu livre das influências exteriores até 1968, quando minha mãe deu a luz ao meu irmão, Paul, um nativo da Carolina do Norte, que tem crescido então para se tornar o melhor amigo e também pior pesadelo do meu pai.'' (pag. 61)

Do modo de lidar com as opiniões do pai, amante reprimido de jazz - na época considerado música para pessoas de 'cor' - que sonhava em ter uma família de músicos, e por meses apareceu em casa com um instrumento diferente, do piano a guitarra, do violão a bateria. ''Segura ai o teu chapéu,'' meu pai disse, ''porque eis aqui aquela guitarra que você sempre quis''. (pag. 20); E da irmã Gretchen, viciada em bronzeamento artificial - ''Até os espaços entre seus dedos eram bronzeados, bem como a palma das mãos e atrás das orelhas. Seus métodos envolviam óleo de bebê e uma série de poses absurdas que resultavam no amontoamento de pessoas, e mães cobrindo os olhos de suas crianças com os dedos cheios de areia.'' (pag. 36)... Sedaris vai contando os dramas e escolhas dele e dos outros 5 irmãos até que ele conhece Hugh, decide conquistá-lo, e os dois mudam para a França.

Na França David descobre quão frustrante são aulas de francês; faz um teste de QI que só serviu para confirmar ''(...) que eu sou bem estúpido, praticamente um idiota. Existem gatos que pesam mais que o meu QI. (...) Quando eu fiquei abatido por causa do resultado do meu teste, Hugh explicou que todo mundo pensa diferente - O que acontece é que eu assim o faço numa média bem inferior a de um adulto normal.'' (pag. 246)

''Quando as pessoas me pedem para resumir esse tempo que passei em Paris, eu procuro a minha pilha de tickets de filmes e murmuro por causa do peso. Tenho morado aqui por mais de um ano, e apesar de ainda não ter visitado o Louvre ou o Pantheon, eu assisti Álamo e A ponte do rio Kwai. Não fui ao Palácio Versailles mas eu consegui pegar as sessões de Oklahoma!, Brasil, e Nashville. Deixando de lado minhas visitas ao mercado, meu conhecimento sobre Paris é limitado ao que aprendi em Gigi.'' (pag. 205) 

Ler Me Talk Pretty One Day foi uma terapia após dias corridos e estressantes, tentei colocar nesse resumo um pouco mais sobre o livro mas é complicado relatar uma história em que cada capítulo é um momento diferente - a história não tem uma sequência cronológica, cada capítulo relata fatos aleatórios ocorridos em momentos aleatórios.

O interessante é que David Sedaris compartilhava suas histórias num programa de rádio no início da década de 90, o programa virou um sucesso, e anos depois Sedaris decide compilar seus dramas da vida moderna em Me Talk Pretty One Day, onde escreve com simplicidade e ironia, sem querer ser forçado, mas ao mesmo tempo sendo absurdamente engraçado - eu pularia os capítulos em que ele comenta suas experiências com drogas, mas fora a isso li o livro gargalhando, as mãos tremendo, e eu tentando me controlar enquanto eu chorava de rir. Must read, certamente.

Monday, September 19, 2011

Logo, no entanto, ela começou a racionalizar consigo, e tentar sentir menos. Oito anos, quase oito anos havia se passado, do dia em que tudo foi desfeito. (...) O que oito anos seriam capaz de fazer?
(...) Alas! com todo seu raciocínio, ela descobriu que para os sentimentos reprimidos oito anos podem ser quase que nada. Agora, como traduzir os sentimentos dele?
Persuasion,   Jane Austen, pag. 51.

Saturday, September 17, 2011

Poema de Sábado

Estafa de Amor

Sentir no coração correr em gotas
O suor intenso dessa igual paixão,
É imaginar, nesse amor, a imensidão
De muitas e muitas aventuras...

E sem parar de amar, te amando
É como se o mundo não adormecesse
E sem amanhã, sem noite, sem fim,
Amar sem nunca descansar do amor!

E incansavelmente amando, querida
Nem percebemos a estafa desse amor
E quando exausto, o coração gritou
Meu organismo explodiu em alegrias

É que no íntimo de nós dois amantes,
O vírus da paixão fertilizou a vida
E quando nossos corpos se encontraram
O amor, na sua magnificência se consolidou.

Gaitano Antonaccio, 
Só Amor Poesias, pag. 47

Saturday, September 3, 2011

''Não é o prazer sexual que busco'', ela costumava dizer, ''é felicidade. E prazer sem felicidade não é prazer''. Em outras palavras, ela estava batendo nos portões de sua memória poética. Mas o portão estava fechado. Não havia espaço para ela em sua memória poética. 
The unbearable lightness of being
A insuportável leveza do ser 
Milan Kundera, pag. 209

Monday, August 29, 2011

I am Nujood, Age 10 and Divorced (Nujood Ali with Delphine Minoui)


''Talvez Nujood ainda não tenha se dado conta, mas acabou de quebrar um tabu. A notícia do seu divórcio se espalhou pelo mundo, relatada por vários jornais internacionais, pondo um fim ao silêncio que encobre uma prática que, infelizmente, é bem comum em vários países: Afeganistão, Egito, Índia, Iran, Mali, Paquistão... Se sua história nos toca assim tão profundamente, é também porque nos faz olhar para dentro de nós mesmos. No Ocidente, é moda instintivamente lamentar o destino das mulheres Islâmicas, porém violência doméstica e a prática de casamentos arranjados para crianças não é uma realidade restrita apenas ao mundo Islâmico.'' (pag. 172)


Nascida na província de Hajja no interior do Yêmen, Nujood nem mesmo sabia a idade que tinha - 7, 8, 9 anos de idade? - quando o pai arranjou seu casamento com um homem quase 30 anos mais velho. Acordo feito, e em menos de 2 semanas, Nujood ainda uma criança, nem sequer menstruando, já era uma mulher casada. O novo marido a separa da família, mudam para o interior, onde é humilhada, maltratada, e espancada pelo marido.

''Minha mãe teve dezesseis filhos. Para ela, cada gravidez foi um grande desafio. Ela sofreu em silêncio por três abortos espontâneos, e perdeu um dos bebês durante o parto. E por que não havia médicos, quatro  dos meus irmãos, que nunca cheguei a conhecer, morreram por doença entre as idades de dois meses e quatro anos.'' (pag. 24)

O desejo de ter a infância perdida de volta, e a saudade da família, incentivaram  Nujood a emplorar ao marido que a levasse de volta à cidade de seus pais por um certo período, e foi durante esse período de alívio que Nujood tomou coragem para fugir de casa em busca de ajuda. A única informação que tinha era a de que precisava encontrar um juiz e informar que queria um divórcio. Divórcio. Nujood nem sabia o que a palavra significava na verdade, mas de acordo com o que foi informada, divórcio a livraria do casamento que nunca desejou, e do homem que a estuprava e espancava diariamente. Divórcio. E é assim que a história começa.

Nem consigo resumir em palavras o sofrimento da história de Nujood. O livro é narrado por ela, e foi escrito por Delphine Minoui, jornalista do Oriente Médio correspondente para o jornal francês Le Figaro, que acompanhou de perto o caso de Nujood e a conheceu dois meses após o divórcio.

A história de Nujood não é a primeira e nem será a última, sua vida é semelhante à de milhares de outras meninas no Yêmen, Afeganistão, Paquistão e por aí vai, mas a história de Nujood traz esperança, traz uma luz no fim do túnel para tantas outras meninas que sofrem com o mesmo destino. Com a ajuda de advogados locais - que mesmo dividindo a mesma cultura, ficaram impactados e chocados que a história dessa criança, e decidiram abraçar sua causa - e da imprensa, Nujood consegue sua liberdade, e vai além... passa a inspirar muitas outras jovens a também buscar uma saída.

''Nesse país da península Árabe, onde o casamento de crianças é comum, e tem base em tradições que, a princípio, pareciam não ter como por um fim, esse ato inacreditável de bravura [de Nujood] tem encorajado outras pequenas vozes.'' (pag. 171)

Nujood foi a primeira jovem a conseguir um divórcio no Yêmen, aos 10 anos de idade. E foi eleita ''A mulher do ano'' em 2008 pela revista Glamour (reportagem em inglês aqui), e teve sua história relatada em jornais como The New York Times (reportagem em inglês aqui), Los Angeles Times (reportagem em inglês aqui), e na revista Time (reportagem em inglês aqui).

Saturday, August 27, 2011

Poema de Sábado

Soneto de Londres

Que angústia estar sozinho na tristeza
E na prece! que angústia estar sozinho
Imensamente, na inocência! acesa
A noite, em brancas trevas o caminho

Da vida, e a solidão do burburinho
Unindo as almas frias à beleza
Da neve vã; oh, tristemente assim
O sonho, neve pele natureza!

Irremediável, muito irremediável
Tanto como essa torre medieval
Cruel, pura, insensível, inefável

Torre; que angústia estar sozinho! ó alma
Que ideal perfume, que fatal
Torpor te despetala a flor do céu?

Londres, 1939

Vinícius de Moraes, Livros de Sonetos,
pag. 29 

Saturday, August 20, 2011

Poema de Sábado

Soneto já antigo

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra York, onde nascestes (dizes...
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes

Embora não o saibas, que morri...
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará... Depois vai dar

A notícia estranha a Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e que lá ande!

Fernando Pessoa - Ricardo Reis
Mensagem, pag. 136 

Saturday, August 13, 2011

Poema de Sábado

Soneto de Florença

Florença... que serenidade imensa
Nos teus campos remotos, de onde surgem
Em tons de terracota e de ferrugem
Torres, cúpulas, claustros: renascença

Das coisas que passaram mas que urgem...
Como em teu seio pareceu-me densa
A selva oscura onde silêncios rugem

Que tristes sombras nos teus céus toscanos
Onde, em meu crime e meu remorso humanos
Julguei ver, na colina apascentada

Na forma de um cipreste impressionante
O grande vulto secular de Dante
Carpindo a morte da mulher amada...

Vinícius de Moraes, Livro de Sonetos