Levei quase 1 mês lendo esse livro, que começou beeem monótono (e já explicarei o porquê), foi me prendendo aos pouquíssimos, mas me fez devorar a história perto do final.
Victor Hugo decidiu escrever a história após uma das suas muitas visitas a catedral de Notre-Dame, ao ler engravada em uma parede a palavra 'ANÁΓKH (DESTINO, em Grego). O fatal e melancólico significado da palavra tocou Hugo imensamente - quem poderia ter sido essa alma atormentada que não pode passar por aqui sem deixar sua infelicidade registrada na parede de uma igreja antiga? E por causa dessa palavra, Victor Hugo fundou a história, lançada em 1831 com o título Notre-Dame de Paris, sim a versão original não se chama "O corcunda de Notre-Dame", essa foi a adaptação e também culpa das traduções (para desgosto de Hugo).
Eis aqui o motivo da monotonia do livro. Comecei a ler interessada na história do Corcunda - e quando vi Victor Hugo encher páginas e páginas descrevendo, Paris, Notre-Dame e seus arredores pensei estar lendo a história errada (trocaram as capas!). O livro é dividido em livros ao invés de capítulos, e pode esperar por muita conversa sobre arquitetura, engenharia, filosofia, etc, etc, a história só começa a ser desenvolver realmente lá pela página 206. Hugo é extremamente descritivo, e quando eu falo descritivo, pode levar ao extremo, ele e Flaubert são perfeitos nisso!
Hugo é o narrador-onisciente, conversa e questiona o leitor durante toda a história - "O leitor provavelmente não esqueceu que..." (pag. 423) - e a história... bem, senta que lá vem ela.
Uma prostituta de Paris após anos de sofrimento e solidão deu a luz a uma linda menina, Agnes, perfeita e delicada. Querendo saber o futuro brilhante que a filha teria pela frente, a mãe a leva aos ciganos que recentemente chegaram a cidade, para ter sua "sorte" lida. Poucos dias depois a criança some e em seu lugar é deixado um ser deformado, um monstro - "Não tentaremos descrever para o leitor aquele nariz tetraedro, aquela boca de pé de cavalo, aquele pequeno olho esquerdo escondido sob enorme sombrancelhas vermelhas; o olho direito desapareceu completamente embaixo de uma enorme verruga; aqueles dentes pontudos (...) seu rosto uma mistura de malícia, admiração e tristeza (...) a cabeça gigantesca com espetados cabelos vermelhos; entre seus ombros uma enorme corcunda (...) pés enormes e mãos monstruosas" (pag. 52).
Os ciganos roubaram sua menina para sacrifício e deixaram de presente o próprio demônio - foi o que concluiu - a única lembrança é um lado do par de sapatinhos, feitos com todo amor pela mãe. A mãe? desesperada pela dor, perambula pelas ruas da sua cidade até desaparecer da vista dos moradores. Sua história de dor e sofrimento foi espalhada aos quatro ventos - "Porque para uma mãe que perde sua cria, todo dia é o primeiro dia. Sua dor nunca envelhece; embora as vestes do luto se tornem gastas e perdam a cor, o coração continua escuro para sempre" (pag. 331).
O monstrinho é levado a Notre-Dame - que de acordo com a tradição da época, é para onde todas os órfãos são levados para serem expostos e adotados - e após dias exposto, é adotado pelo vice-bispo de Notre-Dame, Claude de Frollo - que o chamou de Quasimodo, e o ensinou a ler e a escrever.
Frollo é um personagem super interessante - perdeu os pais durante a Peste Negra aos 19 anos, entrou em crise porque nunca tivera tempo para emoção, e decidiu ser o pai do pequeno Jehan de Frollo -"porque descobriu que o homem precisa de amor, que a vida sem um amor aquecedor nada mais é que uma roda seca, que range e roça nas curvas" (pag. 145).
Claude de Frollo era um homem com sede por sabedoria, devorador de qualquer fonte de conhecimento, estudou tudo o que se pode imaginar - de Filosofia a Medicina, e atingiu todos os graus de ensino, Licenciatura, Mestrado, e Doutor em Artes - Fluente em Latim, Grego e Hebreu - e quando não restava mais assunto no campo "legal", passou para o "ilegal", além da esfera do conhecimento empírico, as ciências ocultas - magia, alquimia, cabala - Nicolas Flamel tornou-se seu ídolo e sua meta era descobrir do universo, transformar metais inferiores em ouro.
Foto: Victor Hugo by Auguste Rhodin (de Young Museum, San Francisco, CA)
Quando Hugo começou a descrever de Frollo, lembrei do "O Código da Vinci" de Dan Brown - porque Frollo tenta montar o quebra cabeça, as mensagens subliminares deixadas de herança à História por membros de Sociedades Secretas Medievais - "Ah, Dan Brown não é nada de inovador - copiou a idéia de Victor Hugo, de quase 200 anos atrás".
Nesse processo de busca por sabedoria, vem as sutis críticas de Victor Hugo à Igreja Católica e seus religiosos demagogos, que pregam a virtude, a castidade, santidade mas são verdadeiros demônios, os maiores pecadores da igreja (como mais tarde na história, testemunharemos).
O tempo passa, Quasimodo cresce selvagem e com posto de tocador de sinos da catedral de Notre-Dame, os sinos são sua paixão, seus melhores amigos, e por causa deles perde a audição. Tem uma devoção por seu pai adotivo, a quem ama de sua maneira, e sofre calado as agressões verbais de Claude de Frollo, cada dia mais amargo por causa do destino escolhido pelo irmão Jehan, que já adulto virou um jovem bom-para-nada, irresponsável, festeiro e mulherengo, mas de bom coração.
Os ciganos tem a Corte dos Milagres como moradia principal - "os bons-para-nada de cada nação - espanhóis, italianos, alemães - de cada religião - judeus, cristãos, mohamedinos, idólatras - pedintes durante o dia, transformam-se em ladrões durante a noite; resumindo, um grande guarda-roupa, onde vestidos e nus daquele tempo atores dessa eterna comédia na qual roubo, prostituição, e assassinato atuam nos pavimentos de Paris". (pag. 82)
La Esmeralda está entre eles mas não é como eles. Caminha pela cidade com seu bode (Djali - que Flaubert usou parou para nomear o cachorrinho de Emma Bovary, resenha
aqui), tocando seu tamborim e dançando.
Impressionante o encantamento que Esmeralda causa nos homens ao seu redor. Mas ela se apaixona mesmo pelo bonito-mas-cabeça-vazia Phoebus, capitão da guarda de Luis XI, após Phoebus salvá-la do ataque repentino de Quasimodo, enquanto era seguida por Gringoire (outro!). Mas ela não guarda rancores, e quando Quasimodo foi espancado em praça pública, Esmeralda foi a única a ter compaixão e dá-lhe de beber.
Gringoire - não posso deixar de falar deste ser. Cômico, irritante e ao mesmo tempo cativante. Ele "casou" com Esmeralda, quando por acidente foi parar na Corte dos Milagres e os Truands decidiram enforcá-lo. Mas o casamento só rendeu uma boa amizade entre os dois e o amor de Gringoire por Djali, o bode de Esmeralda.
"Aos 16 eu quis escolher uma profissão. Tentei de tudo. Virei um soldado, mas não era bravo o suficiente. Virei um monge, mas não era santo o suficiente; até porque eu não era um alcóolatra. Em desespero, virei aprendiz de carpintaria; mas não era forte o suficiente. O que mais queria era ser professor. Verdade. Eu não sabia ler, mas isso não é obstáculo. Percebi, após algum tempo, que eu era, por uma razão ou outra, bom para nada. Então decidi virar um poeta e um rimador. É uma profissão que qualquer um pode ter, se é um vagabundo; e é melhor que roubar"
(pag. 103)
Phoebus é o típico cafageste de qualquer história. Era noivo de sua prima mas adorava um rabo-de-saia (como diz minha avó). Gasta seu baixo salário nos bordéis da baixa Paris, bebe até cair com Jehan de Frollo, adora fazer juras de amor para menininhas inocentes para tirar proveito das coitadas e é isso que faz com La Esmeralda, que acredita em Phoebus e até aceita se entregar a ele, se não fosse Claude de Frollo (aqui vem ele!) aparecer e apunhalar Phoebus pelas costas e deixar Esmeralda para ser presa e condenada a forca por um crime que não cometeu.
Quasimodo salva Esmeralda no dia marcado para seu enforcamento e a esconde em Notre-Dame (vale lembrar que enquanto presa, Esmeralda recebeu a visita de Claude de Frollo, que declarou seu amor em um angustiado discurso - e fora rejeitado). Phoebus não morreu, mas também não moveu um dedo para evitar a sentença de Esmeralda, e as autoridades também não buscaram saber o estado de saúde de Phoebus - "Justiça naquele tempo estava muito pouco preocupada com correção ou precisão nos seus procedimentos contra um criminoso. Contanto que o acusado seja enforcado, isso era tudo que importava". (pag. 333)
Esmeralda também não esqueceu Phoebus e sabia que o amado vivia, mas isolada do mundo numa das torres da catedral, seu único contato com o mundo era Quasimodo, que a metia um medo terrível pela sua aparência deformada, mas não poderia esquecer que aquele corcunda salvou sua vida.
"Sozinha ela meditou nas palavras maravilhosas daquele ser monstruoso, impressionada pelo som da sua voz, tão rouca e estridente, e ao mesmo tempo tão gentil"
(pag. 363)
Quasimodo a amava, por certo. Assim como Claude de Frollo. Phoebus nem conta na história, porque para ele sempre foi aventura (mas a pobre Esmeralda não sabe disso e ainda tem esperanças!). Mas Victor Hugo fez questão de mostrar a diferença entre um amor vindo de um coração puro, inocente, sem pedir nada em troca como o de Quasimodo, e o amor vindo de um coração corrompido como o de Frollo.
"Ao acordar uma manhã ela viu na sua janela dois vasos cheio de flores. Um era brilhante, um bonito vaso de cristal mas rachado; tinha deixado toda a água escorrer, e as flores haviam murchado. O outro vaso era de argila, rude e comum, mas tinha mantido toda a água, de tal maneira que as flores continuavam vivas e seus botões a abrir" (pag. 376 - Quasimodo para Esmeralda, comparando seu amor com o de Phoebus)
No final Claude de Frollo que tanto buscou o conhecimento e provas científicas, viu-se destruído por um sentimento tão irracional - AMOR - que o levou a insanidade, tem coisa mais ignorante?
"(...) que seu ódio e perversidade não eram nada mais que amor vicioso, amor, fonte de bondade no homem, foi transformado em coisas horríveis no coração de um padre, e aquele homem constituía o que era, por se fazer padre, fez-se demônio".
(pag. 350)
Não vou contar o final, mas não esperem por um final-feliz-a-la-Disney nem Hollywoodiano. Victor Hugo é nu e cru, fora que também é uma excelente aula de História. Hugo investiga a história e sua obscura conexão com o destino da humanidade. Durante a leitura, o leitor percebe o senso de estranhamento de Hugo com os acontecimentos e as mudanças que ocorrem diante de seus olhos, como por exemplo, o fato de a "moda" da época ser refletida nos monumentos históricos, muda o rei e muda o tipo de arte da cidade, o tipo de arquitetura usada na construção de templos, etc.
Muitos ficaram chocados com a obra quando publicada. Claro, a história não segue os traços românticos esperados para época, apesar de parecer ter em suas linhas um possível romance, Notre-Dame de Paris é uma tragédia e como tal vai seguir firmemente essa linha. O que muitos não aceitam é o fato de que Victor Hugo não escreveu a história pensando em desenvolver uma história de amor, não necessitamos de uma outra versão de A Bela e a Fera, Hugo sabia que sua história se transformaria num monumento histórico, uma relíquia obscura de uma era destruída, transformada em poeira.
Poeira é última palavra usada por Hugo, a que termina a história.
"É o livro mais abominável que já foi escrito" (Goethe)
* Livro da Lista Rory Gilmore.